segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Sacrifício




O sacrifício na realidade não é sinônimo de assassinato relacionado que está a rituais sagrados, visando no Candomblé ampliar, acumular e distribuir a força vital e sagrada que é o axé. 

Boa parte das religiões utilizava sacrifícios em seus rituais, mas na maioria das vezes com sentido expiatório, não se aplicando essa noção ao Candomblé, por um motivo aparentemente simples. Entre os cristãos, por exemplo, a extinção dos sacrifícios em termos reais justifica-se pela morte de Jesus Cristo que teria morrido para salvar a humanidade e o mais importante sacrifício a que o mundo assistiu.

Ocorre que Jesus morreu pelos cristãos e não pelo Candomblé, isso significa na realidade que os ritos processados em outras doutrinas religiosas não fazem nenhum sentido para os Orixás, da mesma forma que os rituais do Candomblé fogem à compreensão da Igreja Católica; em outras palavras o Candomblé só se explica pelo próprio Candomblé. Na realidade, os processos, os sacrifícios existentes dentro do Candomblé, não adianta recorrer a Bíblia Sagrada para justificar ou muito menos condenar a prática da religião dos Orixás.

O sangue é de importância vital para os Orixás, pois está ligada a concepção, a fertilidade, o nascimento e a todas as etapas da vida. Sem sangue não há axé. Ninguém nasce sem sangue. Quando deixar de haver sacrifícios, o Candomblé com certeza deixará de existir. Não se derrama o sangue dos animais por maldade, por crueldade, muito menos para fazer mal a alguém.

O sacrifício é a condição para que a vida continue e não apenas no Candomblé, todos se alimentam seja de carne, seja de vegetal e um boi só pode ser comido em bifes, ou seja, em partes e depois de morto. Uma alface ao ser desconectada de sua raiz também é morta. Por que não se pode atribuir o significado religioso a um ato essencial para sobrevivência humana? Será mesmo que a condenação do Candomblé se deve ao sacrifício? Não seria essa uma forma da sociedade camuflar preconceitos e  até mais profundos? O ritual macabro não está nos Candomblés e sim nos matadouros onde os animais são submetidos a inúmeras crueldades e morrem com muito sofrimento. Imagine o animal ainda vivo vendo a sua pele arrancada, isso é um exemplo, do que ocorre nos matadouros e é por isso que a carne que será consumida pelos iniciados deve ser sacralizada por meio de rituais específicos. A carne de um animal que morreu com sofrimento não faz bem a ninguém.



Os judeus, os muçulmanos, por exemplo, só consomem carne de animais abatidos de acordo com seus preceitos. Por que o Candomblé não pode fazer o mesmo? É um absurdo acusar o Candomblé de fazer sacrifícios humanos como tem feito alguns segmentos religiosos opostos ao Candomblé. São sacrificados sim: bois, bodes, galinhas, patos, galos, gansos, pombos, e muitos outros animais que dependem do ritual o qual o Orixá pede e que depois serve de alimento a comunidade, mas nunca seres humanos, pois o Orixá vive do homem e através do homem.

Todo homem sacrifica não necessariamente no sentido religioso e mata para sobreviver. Que mal pode haver oferecer aos deuses as partes em que os homens não consomem. Na Bíblia Sagrada, numa das passagens mais marcantes, Abel “imolou” (sacrificou) um carneiro, para Deus e o mesmo foi aceito. No fundo, se estava repetindo um ato já praticado, provavelmente advindo dos africanos. Após sacrificar o animal, cujo sangue é derramado em local determinado, são retirados os “axés”, que são as vísceras principais (moela, rim, pulmão, coração...) que serão fritas ou cozidas, colocadas num oberó (prato de barro|) e oferecidas como complemento, e a carne será consumida pelas pessoas.

A forma como são utilizados o sangue e as demais vísceras dos animais tem uma causa e um objetivo nobre, o de produzir uma energia: o axé, já tantas vezes mencionado, que irá cumprir uma função de maior ou menor importância, beneficiando o alvo de qualquer religião: o ser humano.

O sangue é um forte elemento portador de energia. Dentro de uma ótica-cristã-judaica, o sangue era o principal elemento catalizador de ofertas e oferendas a Deus. A aplicação do sangue de Cristo para salvar vidas aparece de diversas maneiras nas Escrituras Hebraicas: os numerosos sacrifícios de sangue, especialmente os oferecidos no dia da Expiação, eram para a típica expiação de pecados, apontando para a verdadeira remoção de pecados por meio do sacrifício de Cristo. 

Um ebó pode ser definido como um ato de se fazer uma oferenda do reino animal, vegetal ou mineral, de comidas, bebidas e qualquer objeto, a uma divindade ou entidade espiritual. É um ato mágico-religioso que se utiliza das forças naturais existentes nesses elementos para um determinado fim. Por esse motivo, costuma-se dizer que a oferenda revela-se como a maior fonte de comunicação entre todas as forças do universo. 

A palavra Ebó significa sacrifício e vem de bo – alimentar; palavra usada somente para Orixá, coisas e animais, nunca para uma pessoa.

Na língua Iorubá não há diferentes nomes para definir o sacrifício de animais, plantas, de oferendas ou trabalhos determinados pelos Odu-Ifá. Tudo é conhecido por um só nome: ebó. Há uma tendência de se atribuir qualidades parecidas dos humanos aos Orixás, a quem as oferendas são feitas. Eles podem ouvir tocar, sentir nossas emoções, têm apetites, desejos e tabus semelhantes aos seres humanos. Para manter essa comunhão ofertam-se de forma regular as oferendas sob diversas formas, de acordo com a situação que se almeja.

Na realidade os maiores mitos na cultura africanista pregam à caça como Oxóssi que se fez Orixá e se fez lembrado, se fez responsável, se fez rei de Ketu por ser caçador, por ser Odé. Como outros Orixás, como Ogum que também caça que também mata, mas qualquer itan, qualquer estória que se pregue, que se professe dentro da cultura africanista, vai se achar no final  da estória a razão pela qual foi sacrificado o animal chega a ser mais nobre que outros sacrifícios que existem em outras seitas, em outros segmentos religiosos.

Lembrem-se de que Jesus foi condenado à morte por pessoas que viviam a sacrificá-lo, depois fazendo hipocritamente o sinal da cruz, adorando a sua imagem ensanguentada. O Candomblé não é contra a cultura, não é anti-Bíblica, mas com certeza contra a hipocrisia dos homens, que mataram Jesus. Nós não matamos aos nossos Orixás, nós os amamos com todos os seus defeitos e qualidades. Nós amamos Ogum, senhor das guerras, ainda que para fazer a guerra tenha que matar, pois não existe uma guerra sem mortes, não existe uma guerra sem derrotados. Nós amamos Iansã com o seu poder de guerra, mas Oyá jamais vai ter forças na sua adaga se não cortar, e assim amamos os Orixás cada um com sua essência, cada um com a sua base, cada um como são e nós não matamos os nossos Orixás.

Para o Candomblé tudo o que a natureza produz é sangue, pois o que define o sangue é a força que detém, ou seja, o Axé, e um sacrifício requer a utilização com vários tipos de sangue vindo das mais variadas fontes da natureza atribuindo vida e sentido ao Orixá, aos homens e a própria existência.

O elemento mais precioso do Ilê é a força que assegura a existência dinâmica. É transmitido, deve ser mantido e desenvolvido, como toda força pode aumentar ou diminuir, essa variação está relacionada com a atividade e conduta ritual. A conduta está determinada pela escrupulosa observação dos deveres e obrigações, de cada detentor de Axé, para consigo, seu Orixá e para o seu Ilê.

O desenvolvimento do axé individual e do grupo impulsiona o axé do Ilê. A força do axé é contida e transmitida através de certos elementos representativos dos reinos: animal, vegetal e mineral, quer sejam da água doce ou salgada – da terra, floresta – mato ou espaço urbano. Está contido nas substâncias naturais e essenciais de cada um dos seres animados ou não, simples ou complexos, que compõe o universo. Os elementos portadores de axé podem ser agrupados em três categorias:


1 – “Sangue” Vermelho;
2 – “Sangue” Branco;
3 – “Sangue” Preto;


1 – O “Sangue” Vermelho 

        No Reino Animal é representado pelo fluxo menstrual, pelo sangue dos animais, pelo sangue humano, portanto todas as pessoas são portadoras de axé.

        No Reino Vegetal o epô (azeite de dendê), ossún (pó vermelho), mel (sangue das flores), favas (sementes), vegetais, legumes, grãos, frutos (obi, orobô), raízes...

      No Reino Mineral os metais como bronze, cobre, areia, otás (pedras), barro, terra, são portadores de sangue vermelho.
O sangue vermelho está mais diretamente relacionado as coisas quentes, ao movimento e ao fogo, razão pela qual os Orixás exigem uma quantidade maior desses elementos, dominam exatamente esses aspectos da natureza como Exú, Xangô, Iansã.



2 – “Sangue” Branco – Associado à água e o ar.

       No Reino Animal vem simbolizado através do sêmen, a saliva, emí (hálito, sopro divino), plasma (em especial do igbin – espécie de caracol), inan (velas). O igbin sacrificado a Oxalá é um bom exemplo de animal de sangue branco.

       No Reino Vegetal – Favas (sementes), seiva, sumo, álcool, bebidas brancas extraídas das palmeiras e de outros vegetais, Yiérosùn (pó claro, extraído do Iròsún), pó utilizado pelos Babalaôs do Opelê-Ifá, Ori (espécie de banha vegetal), legumes, grãos, frutos, raízes...

        No Reino Mineral – O sal, efun (espécie de giz), a prata, o chumbo, otás (pedras), areia, barro, terra.
Todos esses elementos são portadores de axé e combinados reforçam, ampliam ou estabelecem a relação entre os homens e os deuses.



3 – “Sangue” Preto

        No Reino Animal – Cinzas de animais sacrificados.
   
    No Reino Vegetal – A cor verde, assim como o azul são variações da cor preta. O sumo escuro de certas plantas, o ilú (extraído do índigo), Wáji (pó azul), carvão vegetal, favas (sementes), vegetais legumes, grãos, frutos, raízes...

       No Reino Mineral – Carvão, ferro, osum, otás, areia, barro, terra.


A esses elementos relacionam-se mais diretamente aos Orixás da terra como Ogum, Oxóssi, Obaluaiê e muitos outros. 

O axé é uma força vital que pode ser acumulada, aumentada com o sacrifício, a utilização das mais variadas fontes de axé provenientes de todos os reinos d natureza e que fortalece o poder do Orixá e também do Candomblé. Uma casa de axé ao ser iniciada, ao ser fundamentada, ao ser fundada, o sangue é a base que dá segurança através dos assentamentos de portão, onde com certeza sacrificam-se frangos para os Exús responsáveis e sejam quais forem.

Aos Orixás de fora chamados conjunto de Tempo, Orixás que passam para os seguidores, para os membros, para a comunidade em si do axé, caminhos no sentido Ogum; fartura, prosperidade no sentido Oxóssi; literatura, cultura, sabedoria no sentido Ossaim e com certeza muita saúde no sentido geral a todos do axé nos caminhos de Omulu, Obaluaiê .

Meu Pai Bessém vem mostrando o eterno ciclo da vida, a eterna continuidade, deixando claro não só para o Babalorixá, mas para todos os membros dessa comunidade que o Candomblé é um círculo, um grande círculo da vida onde pessoas chegam, pessoas saem, pessoas vem, pessoas vão, pessoas que com certeza participam, mas também se vão, pessoas que convivem espiritualmente e materialmente dentro do axé e depois também se vão espiritualmente e materialmente no axé. 

Todas as forças, todo o segmento no ariaxé central, alimentando a terra, tornando a terra fértil, tornando aquele lote de terra, esse lote sagrado chamado casa  de axé, sala de candomblé, corte, pois os quatro cantos também fundamentados mostrando a grande esteira energética que é formada, que é montada numa casa de axé, numa sala de candomblé, onde Xirês acontecem, obrigações são presenteadas à sociedade, aonde apresentações sociais espiritualistas são consagradas a cultura africanista através do balé encantado dos Orixás, através do corte mágico de Ogum, através da adaga brilhante de Oyá, através do dengo, do charme, do chamego de Oxum, através da penumbra, através da lacuna que fica aberta entre a alegria e a tristeza nos caminhos de Obaluaiê, aonde Nanã enaltece a vida e a morte, aonde Xangô mostra a sua realeza, mostra que apesar da morte existir, a vida ainda é mais importante, aonde Oxalá com seus passos cansados e ambíguos vem dançando suavemente mostrando que não se tem pressa para nada, que aqui estamos, daqui iremos, mas daqui voltaremos e daqui com certeza iremos novamente e assim segue toda essa base que é construída através de sacrifícios de animais, oferendas anuais que são feitas no decorrer da necessidade, no decorrer do cotidiano de uma casa de axé, aonde muitas vezes professa-se de forma negativa, professa-se de forma errada mas ainda assim o Candomblé não pode ser mudado pelo sacrifício existente dentro do mesmo, mostrando que a cultura africanista desde que o mundo é mundo, é primordial para a convivência humana e que o sacrifício feito, praticado, oferecido ritualisticamente nas casas de Candomblé fazem parte da essência, da base lá do primeiro clarão de vida, no surgimento do mundo, lá do primeiro estrondo e que ecoou no deserto, que ecoou no vácuo mostrando assim que o mundo seria uma grande fonte de energia e com ela seria renovado cada elemento, renovado cada ser.